Haverá um clássico literário digital?


Clássico literário x tecnologia

Quando recebi o convite do curador da Fenelivro para debater o tema central do evento “O futuro do livro, o livro do futuro” olhando para a perspectiva do surgimento de um novo clássico literário, assaltou-me a surpresa. Normalmente os eventos relacionados a livros, leitura e/ou literatura tem abordado o livro digital ainda como algo distante ou ameaçador, no máximo uma promessa vaga para um futuro impreciso. Incluir a discussão da qualidade literária do que é produzido no âmbito digital significa assumir claramente que, independente da atual percentagem de vendas no digital em relação ao impresso (ainda muito baixo), ignorar essa via já não é mais possível. A proposta era que eu, o editor Ednei Procópio, especialista em e-books, e Roberto Bahiense, da Nuvem de Livros discutíssemos a questão juntando os diferentes pontos de vista (autor, editor e veículos de disseminação do conteúdo). Infelizmente, Roberto Bahiense não pode se juntar a nós, mas Ednei Procópio e eu pudemos contar com uma platéia atenta e questionadora.

Antes de discutirmos a possibilidade de surgimento de um clássico literário na esfera digital, Ednei Procópio apresentou uma contextualização das mudanças tecnológicas, geopolíticas e sociais que nos trouxeram a esse cenário em que a grande maioria da população economicamente ativa dispõe de um smartphone conectado à internet e o quanto isso interfere nos hábitos de leitura e consumo (inclusive de livros). Por outro lado, tratou de lembrar também o que é, de fato, o cerne de um livro. Independente do hardware em que ele se apresenta (o hardware, como parte física, abrange desde os antigos pergaminhos até os atuais e-readers, tablets ou smartphones).

A partir do contexto apresentado por Ednei, pude compartilhar minha visão sobre o tema, de que o conteúdo de um livro é a única parte que pode levar à sua classificação como clássico, nunca o hardware ou o software em que foi produzido ou pelo qual se viabiliza sua leitura. É o texto, a obra em si que será (ou não) lembrada pelas suas qualidades, pela sua capacidade de impactar o leitor.

Ainda que seja cabível especularmos sobre mudanças no tipo de literatura que será produzida no futuro em função das influências tecnológicas – e aqui não me refiro simplesmente à adição de links, vídeos e sons ao texto, recursos que podem ser ótimos para livros técnicos ou didáticos, mas possivelmente dispensáveis no caso da literatura – a literatura dita digital, ainda está sendo inventada. A imensa maioria do que se está produzindo continua a ser a mesma literatura como a conhecemos, apenas circula em suportes diferentes do papel. Nem mesmo a tendência à brevidade pode ser diretamente associada ao digital, pois narrativas mais curtas surgiram com a aceleração do cotidiano, dos meios de transporte e toda a ideia de eficiência no uso do tempo que remonta à revolução industrial. Entretanto, há peculiaridades nestes tempos em que vivemos que interferem, penso eu, na construção de um  possível cânone. Desdobremos a questão.

O tempo x a criação

O modo como se lê na esfera digital tende a ser muito menos concentrado, seja em função do excesso de estímulos que concorrem com a leitura, seja pela predominância de textos menos complexos, que exigem menos do leitor e o acostumam à uma concentração superficial. Junte-se a isso a premência ao compartilhamento, que impele muitos a publicarem (seja online ou mesmo em via impressa, coisa que ficou muito fácil com a impressão sob demanda) textos logo após sua criação, sem um tempo de amadurecimento e revisão. Essa pressa, por si só, me parece um fator poderoso na redução das chances de surgimento por um clássico. Isso porque o clássico, segundo uma das definições que mais gosto, a de Italo Calvino, é aquela obra que sempre tem algo a dizer, mesmo (e especialmente) na releitura. Uma obra criada às pressas, sem reflexão e crítica por parte de seu autor, muito dificilmente terá essa consistência.

Ainda, o que consagra uma obra como clássico é sua resistência ao tempo. Assim, somente daqui a algumas décadas é que se poderá saber quais das obras produzidas agora ainda terá alguma relevância.

O excesso de conteúdo

Uma das perguntas interessantes feitas durante o debate dizia respeito ao risco de alguma obra de grande qualidade não ser devidamente reconhecida por não ser “descoberta” em meio à enxurrada de produções pobres e descuidadas. Trata-se de um risco real e elevado, mas que não é diferente do que existe no meio impresso. Que evidência temos de que nenhuma outra obra tão importante quanto “Em busca do tempo perdido” foi escrita naqueles tempos? Não é improvável que tenha sido escrita, mas que, por uma somatória de fatores relacionados ao mercado, à distribuição e ao acaso, jamais chegou a ser avaliada pela crítica.

Na esfera digital isso talvez seja mais provável, pois a facilidade de publicação sem intermediações, onde qualquer autor pode publicar o que bem quiser, praticamente sem custos, multiplicou drasticamente o volume de conteúdo disponível. Porém, estar disponível não significa ser encontrado e lido, especialmente se pensarmos no público leitor mais crítico, que não aderiu de forma ampla à leitura em formato digital.

O alicerce

Sobre os dados alarmantes dos hábitos de leitura dos brasileiros também houve discussões e surgiu um consenso entre a mesa e a plateia de que um dos principais motivos do atual cenário está muito menos relacionado à distração e aceleração estimuladas pela internet do que à capacidade limitada de leitura que se percebe nos chamados analfabetos funcionais. É evidente que um leitor que apenas consegue decifrar de modo rudimentar o sentido dos signos escritos não poderá obter prazer na leitura, especialmente se a leitura exigir reflexão e uma série de associações com outras obras ou outras formas de arte. A habilidade de leitura é alicerce indispensável para que se formem novos leitores, juntamente com o estímulo dado pela família e pelos professores, além, é claro, do acesso aos textos. Este acesso sim poderia ser tremendamente facilitado pelas ferramentas digitais.

Comentou-se também que as obras clássicas dificilmente seriam escolhidas e compreendidas pelo leitor não experimentado sem um processo de mediação. É importante apresentar tais obras dentro de um contexto que favoreça sua apreensão pelo leitor. Quando o sujeito já mergulhou no (bom) vício da leitura, terá reunido bagagem suficiente para desfrutar de tais obras, mas não se pode esperar que o jovem que tomou gosto pela leitura graças às populares obras do gênero infantojuvenil passam diretamente e sem alguma intermediação à degustação dos russos. Por tudo isso é que o papel dos professores se torna ainda mais relevante se desejarmos promover a leitura de obras mais complexas.

Conclusões

A conclusão a que pude chegar não tem nada a ver com uma visão categórica sobre o surgimento do novo clássico literário no mundo digital (até porque já foi dito por muitos, que o cânone não é o homem de seu tempo), mas sim de que existem ainda pessoas em número suficiente (mesmo que esse número seja infinitamente menor do que o desejável) para provocar movimentos e manter vivo o hábito da leitura e a valorização da literatura. Gente disposta a discutir e buscar soluções. Pessoas que acreditam no poder da palavra como matéria prima para reflexão e mudança. E por tudo isso, registro aqui minha gratidão à organização da Fenelivro e a alegria de ter conhecido o Ednei Procópio ao vivo, uma pessoa incrível.

 

 


Sobre Maurem Kayna

Maurem Kayna é Engenheira Florestal, baila flamenco e é apaixonada pela palavra como matéria-prima para a vida. Escreve contos, análises sobre a auto publicação e tem a pretensão de criar parágrafos perenes.

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